“A guerra na Ucrânia está consumindo uma enorme quantidade de munição”, declarou, no final de fevereiro, Jens Stoltenberg, secretário-geral da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), ao alertar sobre a escassez de produtos e os problemas que isso pode gerar. Apesar da mobilização do Ocidente e o apoio militar da aliança, o exército de Volodymyr Zelenksy pode ficar sem munições para continuar lutando devido à demora na produção dos materiais. Essa situação acontece em decorrência das tropas ucranianas estarem disparando mais do que as empresas de armamentos ocidentais conseguem produzir – o tempo de espera para entrega de balas de grande calibre está chegando a 28 meses. “Os gastos com munição na Ucrânia são muitas vezes maiores do que nossas taxas de produção atuais. Isso coloca nossas indústrias de defesa sob pressão”, destacou Stoltenberg. A falta de auxílio para a Ucrânia não é a única preocupação. Sem munições, os países ocidentais ficam vulneráveis. “Essas nações não só estão entregando munições firmemente para Ucrânia, mas elas podem se colocar em situação de risco se tiverem seus estoques de munições muito baixos”, explica Igor Lucena, economista e doutor em Relações Internacionais pela Universidade de Lisboa.
Em declaração durante uma reunião do grupo de contato para a Ucrânia – que conta com representantes de mais de 50 países – Stoltenberg revelou que, inicialmente, a Otan tinha coberto as necessidades de Zelensky somente com o estoque da aliança, contudo, informou que não pode mais continuar assim. “Precisamos produzir mais para abastecer as forças ucranianas, garantindo ao mesmo tempo que tenhamos munição suficiente para defender cada centímetro do território da Aliança”. Essa mudança faz as nações pressionarem seus fornecedores a aumentarem a produção. Em contrapartida, eles também tentam fazer com que outros países, como o Brasil, passem a fornecer armamento. Em janeiro, durante o encontro do chanceler alemão Olaf Scholz com o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, foi solicitado que o Brasil enviasse armas para a Ucrânia, mas o petista declarou que o país não vai fazer isso. “O Brasil não tem interesse em passar as munições, para que elas não sejam utilizadas na guerra entre Rússia e Ucrânia. O Brasil é um país da paz, portanto, não quer ter qualquer participação, mesmo que indireta”, declarou.
Mesmo com as pressões que os países que se mantiveram neutros até o momento tem sofrido para enviar armas para Ucrânia, ainda mais agora com a escassez de munições, Lucena não acredita que isso vá fazer com que essas nações entrem na guerra. “Países que se mantiveram neutros vão continuar neutros, o que pode acontecer é uma triangulação, ou seja, esses países vendem munições para outras nações e elas importam, legal ou ilegalmente”, explica o especialista, lembrando que foi isso que aconteceu quando os europeus decidiram enviar tanques Leopard 2 para a Ucrânia – eles precisaram da autorização da Alemanha para darem continuidade no fornecimento.
A guerra na Ucrânia fez com que outro problema surgisse: o aumento na produção de armas. “O mundo nunca conseguiu se livrar de armas, e como a guerra mexeu no ambiente geopolítico, os países acabam se rearmando. Em momento de tensões e ruptura de reações, a indústria armamentística tende a aumentar de novo, infelizmente”, diz Carlos Honorato, mestre e PhD em Administração pela FEA-USP. “É a geopolítica do mundo desde sempre e não vai ser agora que vai mudar”. Uma prova dessa mudança foi a Alemanha, que três dias após a invasão russa à Ucrânia, mudou sua política externa e anunciou que vai aumentar seus gastos militares. Essa foi a primeira vez que o governo alemão teve esse tipo de ação, que vai contra a sua política instaurada desde o fim da Segunda Guerra Mundial, após o expansionismo e crimes de guerra do nazismo. Até a invasão russa à Ucrânia, a Alemanha havia construído sua estratégia baseada na rejeição de intervenções militares e da entrega de armas a países em guerra. “A produção de armas e equipamentos já aumentou drasticamente, as principais fábricas estão funcionando em três turnos, as grandes empresas internacionais com capital aberto na Europa já valorizaram suas ações em mais de 100% nos últimos 12 meses”, fala Lucena.
Nesta semana, o chanceler alemão Olaf Scholz declarou que seu país quer reforçar, de forma maciça, sua capacidade de fabricação de munições e de equipamento militar para responder aos desafios de segurança após a invasão russa da Ucrânia. O governo está conversando com a indústria de defesa sobre fazer “uma verdadeira mudança de direção — para aquisições rápidas, planejadas e eficazes de equipamento militar do Bundeswehr e de outros Exércitos europeus”, declarou Scholz ante a Câmara baixa do Parlamento alemão. O objetivo é, segundo ele, criar na Alemanha “uma base industrial que dê sua contribuição para a garantia da paz e da liberdade na Europa”. “Precisamos de uma produção contínua de armas, equipamentos e munições essenciais. Isso requer contratos de longo prazo e avanços para desenvolver capacidades de fabricação”, frisou. Os líderes europeus prometeram ao presidente ucraniano acelerar o fornecimento de armas e munições.
Honorato vê a escassez de munição como benéfica à Rússia. “A guerra é algo programado e ameaçado por Putin há tempos. A Rússia se preparou para o conflito. O que vemos agora é que, de um lado, você tem alguém que se preparou, e de outro uma articulação está fazendo de tudo para conseguir fazer frente ao ataque russo”. Ele pontua que um dos fatores que podem ter originado essa possível escassez de munições é o fato de o Ocidente estar enviando os armamentos, mas não terem tempo suficiente para treinar os soldados. “Não adianta ter um monte de armas e não ter soldados que saibam usar, é preciso ter uma combinação de recursos”, diz Honorato, acrescentando que o problema é industrial e logístico “é você fabricar, entregar, treinar as pessoas para usar as armas”. Apesar de não ter informações sobre a situação da Rússia e se ela está passando por dificuldades no que diz respeito às munições, Vladimir Putin está solicitando armamentos para China, que, apesar de não ter declarado oficialmente que está do lado da Rússia, disse estar disposta a enviar armamento. “Isso indica que os estoques russos não estão em suas melhores formações”, aponta Lucena.
O correspondente da "DW" em Kiev, Nick Connolly, disse que o reabastecimento de munições é algo que preocupa a Rússia também. Ele conversou com um comandante do lado ucraniano que revelou que ele está tendo que fazer escolhas difíceis. “Conheci comandantes de obuseiros, de peças de artilharia, que me disseram que não sabem por quanto tempo poderão continuar fazendo seu trabalho, se serão forçados a se retirar e se afastar de posições e esperar por mais munição”, disse o correspondente à DW. Mesmo que a falta de munição seja algo com que se preocupar, Honorato não vê como possibilidade o fim da guerra por falta de munições. “Não é possível imaginar um fim da guerra por escassez de munições. Apesar das idas e vinda, não vai ser por falta de bala que a guerra vai acabar, infelizmente. Vai ter oscilações, pode ser que em um momento as coisas fiquem mais paralisadas, mas não vai acabar por falta de bala”.