Do Buraco da Memória. A propósito da norma do CNJ de fazer a alternância de gênero para as promoções por merecimento, igualando as oportunidades entre homens e mulheres magistradas na ascensão da carreira, compartilho aqui a experiência de ter conhecido e trabalhado com a desembargadora aposentada Shelma Lombardi de Kato, ex-presidente do Tribunal de Justiça de Mato Grosso e ex-presidente do Tribunal Regional Eleitoral (TRE/MT).
Shelma Lombardi de Kato foi uma magistrada à frente do seu tempo, já discutindo e se posicionando sobre as questões do meio ambiente na metade da década de 1980 do século passado, quando a temática era solenemente ignorada por autoridades de diversas instituições. Como magistrada, era reconhecida pelos seus pares pela excelência dos seus conhecimentos jurídicos, em especial no âmbito do direito administrativo.
A minha convivência era de repórter e magistrada. Fiz diversas entrevistas factuais sobre o dia a dia do TJ quando ela ocupou o cargo de presidente do Poder Judiciário no início da década dos anos de 1990. Mas foi quando ela ocupou a presidência da Justiça Eleitoral de Mato Grosso, em especial no ano de 1986, foi o momento mais marcante para conhecer de perto uma magistrada determinada, corajosa e com muita sensibilidade no trato com o cidadão.
No seu período na presidência do TRE/MT, a Justiça Eleitoral promoveu em 1986 um grande recadastramento eleitoral em todo o país. O esforço em Mato Grosso era para garantir o direito a voto de todos os segmentos sociais, incluindo os garimpeiros que se multiplicavam no Nortão. Os garimpos de ouro naquela região de Mato Grosso viveram naquele período um apogeu de exploração que atraía gente de todas as regiões do país, em especial do Norte e Nordeste.
A minha ajuda como então repórter da então Empresa Brasileira de Notícias (EBN), órgão de comunicação do governo federal, foi abrir espaços para a interação da Justiça com os garimpeiros que viviam em áreas de exploração mineral. Isso numa época sem redes sociais, sem internet, e com todas as dificuldades possíveis de comunicação. A estratégia comunicativa: usar a voz do Brasil, com reportagens produzidas pelo escritório da EBN em Cuiabá e com entrevistas no único veículo de comunicação que alcançava e falava diretamente com os garimpeiros: a Rádio Nacional de Brasília. A Voz do Brasil e a Rádio Nacional foram usadas pela ditadura militar, mas com os novos tempos de redemocratização em curso, na governo José Sarney, esses meios seriam usados para reforçar a democracia com o recadastramento eleitoral, uma missão de cidadania levada a cabo pelo Justiça Eleitoral em todo o Brasil.
Pois bem, em todas as gravações ou em entradas ao vivo, a desembargadora procurava tornar comum a comunicação com os garimpeiros. Via Rádio, de Cuiabá com o universo dos garimpos no Nortão (sim, era um colossal desafio naqueles tempos pré-digital), Shelma falava a linguagem coloquial, simples, convocando os garimpeiros a fazer o recadastramento eleitoral, via mutirões da justiça Ela até criou um bordão sempre quando abria a sua fala: "garimpeiros do Nortão".
Talvez se fosse outro magistrado não teria tanto empenho em incluir os brasileiros pobres, envolvidos na exploração de ouro, em localidades isoladas e sem nenhum conhecimento dos seus direitos junto à Justiça Eleitoral. A desembargadora Shelma teve este empenho, esta sensibilidade de usar os meios de comunicação e falar simples, com respeito devido aos brasileiros simples que tinham o mesmo direito de ter o seu título eleitoral.
O resultado: o TRE de Mato Grosso, sob o comando de Shelma Lombardi de Kato, teve o melhor desempenho nacional no recadastramento eleitoral. O então presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), ministro Néri da Silveira, prestou a devida homenagem aos trabalhos da desembargadora.
Todas as homenagens à trajetória da magistrada Shelma são justas. A desembargadora aposentada e ex-presidente do Tribunal de Justiça recebeu uma moção da Comissão de Proteção e Defesa dos Direitos das Mulheres do Conselho Nacional das Defensoras e Defensores Públicos-Gerais (Condege), pelo seu pioneirismo e atuação em prol da pauta feminina, em especial no combate à violência doméstica e familiar. Ela foi a primeira mulher a presidir o Poder Judiciário Estadual.
A honraria foi deliberada em junho, durante o 1º Fórum Nacional das Defensorias Públicas para a Promoção e Defesa dos Direitos das Mulheres (Fonadem), ocorrido em Cuiabá. A entrega da moção foi realizada nesta última segunda-feira (26), durante o Encontro em Defesa do Orçamento Mulher 2024, realizado na sede da Defensoria Pública do Estado.
A defensora-geral, Luziane Castro, a defensora pública Rosana Leite de Barros, que atua no Núcleo de Defesa da Mulher e a atual presidente do TJMT, desembargadora Clarice Claudino da Silva, entregaram em mãos a placa simbólica para a desembargadora aposentada.
O trabalho pela democracia e o direito ao título eleitoral talvez tenha sido o seu maior trabalho em defesa da cidadania em Mato Grosso. A desembargadora que sabia falar simples, foi um exemplo de comunicação sem afetação, sem soberba. A democracia agradece o seu empenho à frente do recadastramento eleitoral, um dos primeiros passos de modernização da Justiça Eleitoral no período pós ditadura militar.
Quando do exercício da Presidência do TSE por duas gestões, de 1985 a 1987 e de 1999 a 2001, o ministro do STF Néri da Silveira capitaneou uma das primeiras iniciativas para a implantação da informatização do voto, ainda em 1986, que foi este Recadastramento Nacional dos Eleitores tão bem conduzido em Mato Grosso pela desembargadora Shelma Lombardi de Kato. Na ocasião, foram recadastrados quase 70 milhões de eleitores, que puderam votar com o título novo. É do ministro Néri a célebre frase que resumiu a depuração do cadastro eleitoral naquele período: “Hoje os mortos não votarão”, referindo-se aos eleitores já falecidos que foram retirados do cadastro da Justiça.