Além das condições de trabalho degradantes, o caso envolve relatos de agressões físicas
Submetidos a trabalho análogo à escravidão por mais de duas décadas em fazenda em Pontal do Araguaia, a 510 km de Cuiabá, os irmãos Marinalva Santos e Maurozã Santos obtiveram na Justiça reparação financeira por meio de Ação Civil Pública (ACP) ajuizada pelo Ministério Público do Trabalho em Mato Grosso (MPT-MT) contra O. M. da S. e seus filhos L. J. da S. e V. L. J. A., proprietários da Fazenda C., localizada a cerca de 10 km do centro da cidade.
Após denúncia recebida em dezembro de 2019 pelo Centro de Referência da Assistência Social (Cras) de Pontal do Araguaia, Marinalva e Maurozã, 43 e 49 anos à época, foram encontrados trabalhando "descalços, com as roupas sujas e mau odor". Ambos eram encarregados(as) de serviços gerais, como a manutenção da horta, da represa e dos animais da propriedade.
As condições de trabalho e de vida no local eram de tal modo precárias que, após primeira visita feita, os(as) profissionais do Cras – a assistente social Kelly Cristina Pereira; o psicólogo José Filho Leite Silva; e a então gestora do Cadastro Único para Programas Sociais (CadÚnico) na cidade, Kedima Antônia Barbosa – retornaram à fazenda com o apoio da Polícia Militar, conduzindo os(as) envolvidos(as) à Delegacia de Polícia Federal, a fim de que prestassem depoimento.
Agressões e humilhações constantes
A violência física fazia parte da rotina de ambos os irmãos. Marinalva relata ter sofrido agressões contínuas, mencionando o uso de pedaços de pau e facão. Ela também teria sido vítima de abuso sexual. Em resposta à equipe do Cras, afirmou que "homens já fizeram coisas que ela não queria".
Há, ainda, relato de ao menos um episódio grave de violência contra Maurozã, que, motivado por fome extrema, "furtou" uma galinha. Uma vez descoberto, foi levado pelo filho da ré para um brejo, onde apanhou pelo ocorrido. Ele acrescentou que, na ocasião, o agressor possuía uma arma de fogo em punho.
A equipe do Cras ressaltou que o tratamento dispensado aos irmãos Santos era brutal. "Devido aos sofrimentos pelos quais passaram, eles tiveram danos psicológicos, não lembrando de sua data de nascimento, idade e nome de pessoas próximas. Quando a Sra. Odete [se] aproximou dos mesmos, eles pediram para finalizar a conversa, nitidamente amedrontados", lembra a assistente social Kelly Cristina Pereira.
No momento do resgate, ao serem questionados se tinham se alimentado naquele dia, as vítimas responderam que haviam comido arroz com soro de leite.
Contradições
O. da S. e sua filha V. L. entraram por diversas vezes em contradição quanto ao tempo em que os irmãos moraram na fazenda, valores recebidos e se os documentos pessoais de ambos estavam ou não em sua posse. Elas também rechaçaram todas as acusações de maus tratos e condições degradantes de trabalho que lhe foram imputadas e afirmaram que tinham com os irmãos Santos uma relação de natureza familiar.
Na ação, o MPT contestou todas as alegações e salientou que a relação abusiva mantida era patronal. "A relação de trabalho rural, jamais formalizada, dos irmãos Santos com as rés era pessoal (tanto que eles não podiam deixar a fazenda), subordinada, não voluntária e sem qualquer teor associativo, filantrópico, terapêutico ou cooperativo que desnaturasse a sua natureza contraprestativa, tanto que ao Cras e à Polícia Federal, a primeira ré, O. M. da S., disse que remunerava os irmãos pelo serviço prestado. Ademais, o caráter violento, exploratório e desumano do tratamento dispensado pelas rés a Marinalva e Maurozã é incompatível com o cariz familiar que atribuem à sua relação com eles. Aproveitavam-se de sua vulnerabilidade para vilipendiar-lhes a dignidade", escreveu o procurador do Trabalho Állysson Feitosa Torquato Scorsafava na petição inicial.
Em maio de 2000, Marinalva passou a receber o Benefício de Prestação Continuada (BPC), cujo cartão e senha ficavam sob a guarda dos(as) exploradores(as). O valor era administrado pelo grupo familiar, sendo sonegado à Marinalva. Sobre o fato, o procurador asseverou: "Elas exploravam-lhes o trabalho e, no caso do BPC [Bolsa Família] de Marinalva, o nome".
Irregularidades
As normas trabalhistas eram sistemática e generalizadamente desrespeitadas nas relações de trabalho na Fazenda Canoeiro. Os irmãos moravam em uma casa em péssimas condições de higiene, não recebiam roupas de corpo ou de cama, Equipamentos de Proteção Individual (EPIs), folga ou salário. Marinalva relata que já havia tentado sair da fazenda, mas retornou para a propriedade por não ter condições de se manter, complementando que as refeições realizadas eram raras e consistiam basicamente em "pão e bolo".