A Turquia vai às urnas neste domingo, 14, em uma eleição que pode encerrar as duas décadas de mandato do presidente Recep Tayyip Erdogan, que venceu cinco eleições parlamentares, duas presidenciais e três referendos — até enfrentou e impediu um golpe militar. O líder, que chegou ao poder após o terremoto de 1999, que matou 17 mil pessoas e provocou efeitos nas eleições realizadas três anos depois, pode perder seu legado pela mesma tragédia. Em fevereiro, quando Turquia e Síria foram abaladas por tremores que deixaram pouco mais de 50 mil mortos, ele foi duramente criticado por demorar a agir. O turco chegou a confessar dias depois que houve “deficiências” na resposta ao terremoto que abalou seu país e a Síria. “Claro, há deficiências, é impossível estar preparado para uma catástrofe dessas”, disse. O acontecimento foi mais um problema na lista de pontos negativos que o assombram. Na semana da eleição presidencial, ele aparecia atrás nas pesquisas de seu principal adversário, o líder da oposição Kemal Kiliçdaroglu (lançado por seis partidos), que melhorou sua posição após um candidato de partido pequeno se retirar abruptamente da disputa, elevado sua vantagem para mais de cinco pontos. Contudo, os especialistas alertam que não se pode confiar nas pesquisas e que o resultado ainda é incerto — até porque, dentro da margem de erro, a vantagem não é confortável.
“Não podemos confiar nas pesquisas porque a interferência governamental é muito grande. Há essa possibilidade de o rival estar na frente por causa do desgaste do Erdogan nos últimos anos, incluindo a inflação e o terremoto, mas não me surpreenderia se houvesse manipulação de resultados e Erdogan vencesse logo no primeiro turno”, alerta o professor de relações internacionais da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM), Gunther Rudzit, lembrando que, em 2018, o atual líder alterou a forma de governo na Turquia — saiu do parlamentarismo para um sistema presidencial. Essa mudança fez com que ele se tornasse, segundo o especialista, “praticamente um ditador”, que está diminuindo a independência das instituições, perseguindo jornalistas, militares, oposição, professores, ou seja, virou um grande autocrata. “Se no início parecia um governo promissor, desandou e virou um autocrata”, afirma Rudzit. Ele ainda recorda que em 2011, quando as primaveras árabes chamaram a atenção do mundo dizendo que a cultura árabe e muçulmana eram incompatíveis com a democracia, a Turquia era a referência, um país muçulmano que tinha uma democracia estabelecida. Mario Schettino, professor de relações internacionais da UFMG e do Ibmec, destaca que a dificuldade enfrentada por Erdogan é a mesma que seus contemporâneos que tentaram ser reeleito tiveram: o cenário pós-pandemia e a guerra na Ucrânia, que abalou o mundo inteiro.
Mesmo em meio às negativas enfrentadas pelo líder turco, Schettino lembra que o chefe de Estado pode se beneficiar do próprio terremoto, que faz com que ele “se coloque mais tempo na televisão do que os oponentes”, e do fato de o eleitorado ainda ter uma imagem da melhora econômica observada no começo do ser governo, tanto como presidente como primeiro-ministro. Ele proporcionou construções no país, que se aceleraram com a crise financeira de 2008, que levou Estados Unidos e Europa a aplicarem taxas de juros zero. Isso levou à entrada de bilhões de dólares em créditos na Turquia, onde os governos de Erdogan redesenharam o formato de inúmeras cidades e conectaram as províncias com uma rede de rodovias e aeroportos. O frenesi da construção também permitiu que turcos com menor nível de escolaridade entrassem no mercado de trabalho, consolidando a base eleitoral do AKP. "Ele investiu bastante em infraestrutura para além das regiões centrais e isso reforça a imagem de que melhorou as condições de vidas do provo turco", diz Schettino. Erdogan também se apoia na questão da segurança, item crucial para a população, principalmente em relação aos curdos, como relembra o professor Rudzit. Não foi por acaso que, na semana passada, o chefe de Estado foi a público anunciar a morte do líder do Estado Islâmico pelo exército turco. “O suposto chefe do Estado Islâmico, cujo codinome era Abu Hussein al-Qurachi, foi neutralizado em uma operação realizada pelo MIT [serviços secretos turcos] na Síria”, disse Erdogan, em pronunciamento à televisão. Apesar de sua derrota territorial, o EI ainda realiza ataques na Síria.
A Turquia tem sido importante nos últimos tempos, principalmente por causa da sua atuação na guerra da Rússia e Ucrânia, que já se encaminha do segundo ano. O país é a 11ª maior economia do planeta, após ajuste em função do custo de vida, à frente de Canadá, Itália e Coreia do Sul, segundo a “The Econominst”. Membro da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) e porta de entrada para a Europa, devido à sua posição geográfica — está entre a Europa e o Oriente Médio —, desempenha papel crucial na moderação do fluxo de refugiados para a União Europeia. Uma mudança no governo poderia impactar não só o próprio país, como o mundo. “A Turquia ocupa espaço muito central na política mundial devido ao seu território. Erdogan tem usado essa posição na Otan e assumido um posicionamento mais autônomo, o que está incomodando os Estados Unidos e a União Europeia, uma vez que ela faz parte da aliança e tem agido diferente em relação à guerra na Ucrânia”, aponta Schettino. Kiliçdaroglu tem uma visão mais voltada ao Ocidente, o que, certamente, seria melhor para a Suécia, que depende de Turquia e Hungria para ser aceita na Otan – Erdogan não é a favor da expansão. “Os turcos vão precisar de ajuda para sair dessa crise que está vivendo. Eles vão precisar União Europeia e Fundo Monetário Internacional (FMI) para sair da crise econômica, e pode ser uma oportunidade para UE conseguir pressionar o novo governo e conseguir o reconhecimento da Suécia”, fala o professor de relações internacionais da ESPM, acrescentando que a posição neutra não deve durar a médio e longo prazo e pode ter uma mudança.
Possíveis mudanças com vitória da oposição na eleição presidencial turca
Kemal Kiliçdaroglu tem uma visão mais centralizada aos Estados Unidos e União Europeia, o que poderia mudar certos posicionamentos que a Turquia adotou nos últimos anos. O especialista Gunther Rudzit acredita que, se ele vencer — precisa obter 50% dos votos mais um —, faria um governo “muito mais democrático”. “Nossa República estará coroada de democracia”, disse o líder da oposição, que quer acabar com “o regime de um homem só”, fórmula que repete, com frequência, para denunciar a extrema concentração de poderes nas mãos do presidente Erdogan. Em seu programa de 240 páginas, o candidato da Aliança Nacional à Presidência, que reúne seis partidos, promete abandonar o regime presidencialista instaurado em 2018 e voltar a uma estrita separação de poderes. Eles querem retornar para um sistema parlamentar, no qual os poderes do Executivo são confiados a um primeiro-ministro escolhido pelo Parlamento. O presidente será eleito para um mandato único de sete anos.
A oposição também promete uma “Justiça independente e imparcial” e a libertação de vários presos, incluindo o mecenas Osman Kavala, condenado à prisão perpétua. Kiliçdaroglu afirma que vai soltar Selahattin Demirtas, líder do partido pró-curdo HDP (Partido Democrático dos Povos) e ferrenho opositor do presidente Erdogan. Ele está preso desde 2016 por “propaganda terrorista”. Ele também afirma que reviverá a liberdade de expressão e de imprensa e quer abolir o crime de “insulto ao presidente”, que permitiu sufocar vozes dissidentes, prometendo aos turcos que poderão “criticá-lo muito facilmente”. Presidente do Partido Republicano do Povo (CHP, laico), Kemal Kiliçdaroglu quer garantir por lei o uso do véu para tranquilizar as eleitoras conservadoras que temem que seu partido, historicamente hostil aos “foulard”, volte atrás em certas conquistas obtidas sob Erdoğan. "Defenderemos os direitos de todas as mulheres", frisou, comprometendo-se a “respeitar crenças, estilos de vida e identidades de cada um”, em contraste com Erdogan, que regularmente acusa as pessoas LGBTQIA+ de “pervertidas”. Kiliçdaroglu deseja reintegrar a Turquia à Convenção de Istambul, que determina o julgamento de autores de violência contra as mulheres. Ancara abandonou esse tratado em 2021.
Para combater a inflação, um problema que assola o país, está planejado romper imediatamente com a política defendida com unhas e dentes por Erdogan. A Aliança Nacional garante que vai reduzir a inflação “para apenas um dígito dentro de dois anos” e “devolverá a credibilidade da lira turca”. A moeda perdeu cerca de 80% de seu valor em cinco anos frente ao dólar. Por fim, busca a adesão plena à União Europeia. Diplomatas e observadores não esperam, contudo, avanços no curto ou no médio prazo. Consciente de que Ancara incomodou seus aliados da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) ao estabelecer uma relação privilegiada com Moscou desde 2016, "a Aliança Nacional promete reafirmar a vocação ocidental da Turquia", explicou, à agência de notícias AFP, Ilke Toygür, professor de geopolítica europeia na Universidade Carlos III, de Madri. A oposição afirma que pretende manter um “diálogo equilibrado” com a Rússia, mas, segundo Çeviköz, a prioridade será se reconectar com a Síria de Bashar al-Assad. Essa é uma reconciliação indispensável para garantir o retorno, “de forma voluntária” e em menos de dois anos, dos 3,7 milhões de refugiados sírios que vivem na Turquia — uma promessa que preocupa os defensores dos direitos humanos.
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