Há um mês que a guerra em Gaza abre os telejornais portugueses, mas nem sempre nesses termos. Por vezes "conflito", por vezes "guerra", os bombardeamentos da população da Faixa de Gaza têm tido vários nomes. "Invasão" saiu do léxico, "incursão" voltou a ser admitido. Explicou-se o que era a punição coletiva, segundo o direito internacional. Perante imagens de bombardeamentos ininterruptos sob um povo forçado a um êxodo, esclareceu-se como é maleável a definição de limpeza étnica.
Peritos debatem se bombardear um hospital é ou não crime de guerra, se estão presentes as dez fases de um genocídio, tal como estabelecidas pelo especialista em genocídios Greogry H. Stanton em 1996, para podermos usar o termo "genocídio". Entretanto, o número de palestinos mortos é atualizado todos os dias na casa das centenas, ultrapassando neste momento os dez mil.
"O que está a acontecer na Palestina não é um conflito. É apartheid. Não estamos a assistir a uma auto-defesa, mas ao genocídio do povo palestiniano." Foi com esta clarificação que a palestina Dima Mohammed, coordenadora do laboratório de investigação ArgLab do Instituto de Filosofia da NOVA e professora na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da mesma universidade, começou a sua intervenção na concentração contra a agressão a Gaza no dia 18 de outubro, em Lisboa.
"Há uma luta semântica a ser travada", diz a investigadora ao Setenta e Quatro, duas semanas depois, em frente à mercearia Zaytouna, uma das várias embaixadas informais da diáspora palestina em Portugal. No último mês, essa luta travada ao nível da retórica, da argumentação e da propaganda agudizou-se.
Discute-se se os milhares de mortos em Gaza configuram um genocídio ou não e se cânticos que clamam pela libertação de um povo serão, afinal, apelos ao extermínio de judeus. Para não ferirem as suscetibilidades do Estado de Israel, líderes mundiais preferem dizer "pausa humanitária" a "cessar-fogo". Há um uso abusivo da memória do Holocausto e das acusações de antissemitismo. Para Dima Mohammed, é a evidência de que "a linguagem também é um dos lugares onde temos de lutar contra a colonização."
Nascida e criada na Argélia, filha de "refugiados filhos de refugiados" que hoje vivem na Cisjordânia ocupada, Dima Mohammed doutorou-se em Estudos da Argumentação e dá aulas sobre filosofia da linguagem, argumentação política e retórica. Já ensinou na Palestina, na Suíça e no Canadá e veio para Portugal trabalhar no ArgLab, que hoje coordena e onde investiga interdisciplinarmente as ligações entre argumentação, linguagem e cognição.
As suas investigações têm-se debruçado ultimamente no uso da argumentação dentro do conceito de injustiça epistémica, um tipo de injustiça relacionada com o conhecimento que se liga às restantes injustiças (económicas, sociais, políticas). A injustiça epistémica evidencia-se através da exclusão e do silenciamento de certos conhecimentos e das pessoas ou dos grupos que os carregam.
É um conceito fulcral, continua a investigadora, para entender o silenciamento dos palestinos e a negligência perante os seus testemunhos, quando "aquilo que dizemos não é considerado credível". E também, considera, torna claras as estruturas coloniais: "a epistemologia não tem as ferramentas necessárias para dar sentido às experiências que vivemos ou para considerar o conhecimento de alguns grupos desprivilegiados".
Podemos falar de injustiça epistémica em relação ao que tem acontecido, no último mês, ao povo palestino. mais especificamente o de Gaza?
Sim. A voz palestina é silenciada. O sofrimento do povo palestino não é recebido como o sofrimento de outros povos pelos media ou os políticos. A resistência palestina é desconsiderada. Assim, uma grande parte da experiência palestina torna-se completamente invisível para o resto do mundo. E enquanto for invisível não será compreensível.
Isto não é coincidência. O Estado de Israel tem isolado os palestinos ao longo de décadas, desde o início da ocupação. Não o faz apenas fisicamente, como vemos no cerco de Gaza ou na dificuldade que qualquer palestino tem em sair para o estrangeiro. Também isola as vozes palestinas. Isto torna as nossas experiências incompreensíveis para o resto do mundo.
Vou à Palestina todos os anos. Tento sempre levar amigos, pessoas que considero saberem muito sobre a Palestina. Ao sair de lá dizem-me sempre, sem exceção, que nada os havia preparado para a experiência de lá estar. O isolamento físico torna-se isolamento psicológico, emocional, mental, intelectual — e também epistémico.
Creio fazer um bom uso da linguagem, mas nem eu consigo explicar o que é ter os colonatos a sufocar as vilas palestinas na Cisjordânia. Em Ramallah, considerada uma das cidades mais seguras, não há nada que proteja os palestinos da violência dos colonos. Maltratam e assediam pessoas nas nossas ruas, nas nossas cidades.
De que maneira é que esse isolamento influencia a noção histórica que temos da colonização da Palestina?
Uma das mais poderosas ferramentas de Israel enquanto estado colonial é o poder de reescrever a História. Não é caso único: todos os poderes coloniais tentaram fazê-lo. Nasci e cresci na Argélia. É um bom exemplo: durante 132 anos, a República Francesa assumiu que a Argélia era uma parte da França e escreveu a História assim.
Quando um povo é descolonizado tem a oportunidade de reescrever a História de uma maneira justa. O problema é que os poderes políticos mundiais não aceitam que Israel é um Estado colonial. Enfim, faz parte das próprias dinâmicas históricas em que vivemos. Felizmente, há quem escreva uma História justa, mesmo a partir de Israel, como os historiadores Illan Pappé e Avi Shlaim.
São dois historiadores israelitas que tentam trazer ao mundo uma versão da história da Palestina e do colonialismo israelita mais próxima da realidade. Falam da limpeza étnica [a nakba, em 1948], que é central para entender o que se passa hoje. Falam da violência colonial, que é a base do estabelecimento do Estado de Israel e que continua a acontecer todos os dias.
Os colonos continuam o projeto colonial israelita através de violência diária. Ameaçam pessoas, atacam aldeias inteiras. Estão a tentar forçar a transferência do povo de Gaza para terminar esse projeto colonial: ter a terra palestina sem o povo palestino.
Parece ser um argumento de autoridade ter um historiador ou intelectual israelita ou judeu a assumir a limpeza étnica de 1948. Deste lado do mundo, cai-se na tentação de falar em nome do povo da Palestina, ainda que, como disse, a experiência palestina seja incompreensível. Como pode restabelecer-se a justiça epistémica em relação ao povo palestino?
Não é dada a mesma credibilidade a uma voz palestina que fale de limpeza étnica. Não tem a mesma autoridade epistémica, podemos dizer. Ainda assim, é muito difícil para um israelita falar do projeto colonial do seu país. É arriscado. Devemos ser solidários com quem arrisca tanto para apoiar a causa justa do povo da Palestina.
Como definimos quem não tem voz? Os palestinos não têm. Mas também os israelitas contra o colonialismo israelita não a têm e sofrem de injustiça epistémica, ainda que de forma diferente. Têm mais capacidade de a ultrapassar, por pertencerem ao grupo que, em princípio, não é tão desprivilegiado. Podem ajudar a tornar essas narrativas mais presentes e a dar voz à experiência palestina.
O combate contra a injustiça epistémica incorpora várias lutas. Uma delas é tentar influenciar a narrativa pública. Depois de ouvir vários historiadores israelitas — que não podem ser chamados de antissemitas — a falar de limpeza étnica, talvez seja desafiada a consciência pública da falsa dicotomia que diz que ou estás do lado de Israel ou és antissemita.
A voz israelita contra a ocupação contra o apartheid, contra o projeto colonial israelita, tem o poder de desafiar as falsas narrativas propagadas pelo Estado de Israel. O discurso público tem um papel fundamental no sustento das injustiças epistémicas.
“O governo israelita vai continuar a mentir, porque não tem verdade nenhuma que justifique o que está a fazer. É gigante o desencontro entre o que dizem e as imagens que vemos todos os dias.”
O atual governo israelita criminalizou os protestos contra o genocídio em Gaza, tal como fizeram os governos francês e alemão. No Reino Unido, vários deputados do Partido Trabalhista foram afastados por dizerem que estavam a favor de uma Palestina livre. A porta-voz da Casa Branca comparou os judeus que protestavam pelo cessar-fogo no edifício do Capitólio, em Washington DC, a supremacistas brancos.
Os poderes políticos ainda têm a ilusão que podem impôr como certa uma narrativa totalmente falsa — só porque tem poder. Sempre aconteceu na História, mas hoje já não deveria ser possível. Talvez seja demasiado otimista, porque estamos a ver isso em todas as dimensões, não só em relação à Palestina.
No caso da Palestina são várias as mentiras elaboradas, as falsas analogias e as comparações injustas. Desta vez estão a puxar os limites e creio que não conseguirão manter essa narrativa, é demasiado. Comparar a [organização] Jewish Voice for Peace a supremacistas brancos é inacreditável.
Ainda assim, não creio que esse tipo de abordagens vá funcionar. Mentiras repetidas podem tornar-se verdades para muita gente, mas já ninguém acredita passivamente que há bases do Hamas debaixo dos hospitais de Gaza. As pessoas perguntam: “onde estão as provas?”. E o governo israelita apresentou um vídeo de animação 3D. Como é possível?
O governo israelita vai continuar a mentir, porque não tem verdade nenhuma que justifique o que está a fazer. É gigante o desencontro entre o que dizem e as imagens que vemos todos os dias. É por isso que é importante falar de consciência pública. O discurso público, a longo prazo, vai fazer a diferença. Não se pode chamar supremacista branco a todas as pessoas que lutam, em todo o mundo, por justiça social e ainda achar que essas mentiras passarão por verdade. Não passarão.
Foram várias as mentiras — entretanto desmentidas — que foram noticiadas como facto, tendo as suas fontes no governo e no exército israelitas.
Costumo perguntar aos meus alunos: “o que fazemos com as mentiras?”. Contradizemos? E damos-lhes, ao mesmo tempo, mais atenção e alcance? O que fazemos, então, com o discurso racista, antissemita? Temos de nos esforçar por revelar as mentiras, mas não devemos entrar em conversa com esses discursos.
É preciso trabalhar sobre as estruturas que criam e promovem essas mentiras. Não podemos envolver-nos num debate com todas as mentiras que ouvimos, porque isso faz com que sejam repetidas. Nem toda a gente que as ouve irá, depois, saber que eram realmente mentiras.
Temos de combater as mentiras e as notícias falsas combatendo as fontes. Vemos todos os dias grandes meios de comunicação a repetir essas mentiras. Corremos um grande risco de polarização. É um combate difícil.
Há quem afirme que o Hamas fez, afinal, dois milhões de reféns, a inteira população de Gaza, colocando na organização a culpa pelos palestinos mortos até agora, já que Israel terá “direito a defender-se”. O que pensa da instrumentalização dos civis feitos reféns?
Não foi Israel que colocou dois milhões de pessoas como reféns, quando bloqueou Gaza [em 2007]? É inacreditável como os media repetem as falsas narrativas israelitas sobre os verdadeiros responsáveis pelo sofrimento das pessoas de Gaza. Se há 17 anos o Estado de Israel não tivesse decidido bloquear a Faixa de Gaza, nada disto estaria a acontecer. Se o Estado de Israel não tivesse ocupado a Palestina, em 1967, nada disto estaria a acontecer.
Dizer que o Hamas é responsável pela morte de civis em Gaza é também assumir uma lógica que não bate certo com o direito internacional. A lei internacional diz precisamente que o Estado israelita é responsável pela população de Gaza, pela segurança dos civis, enquanto ocupante desse território. Israel pode dizer que Gaza não está ocupada, mas isso não é verdade.
Israel tem a responsabilidade de fazer entrar água, comida, medicamentos e combustíveis em Gaza. Não só não cumpre essa obrigação como está a bloquear toda a ajuda internacional. Falar do Hamas como responsável pelo povo palestino em Gaza não faz sentido.
Antes desta conversa, vi uma intervenção da jornalista israelita Amira Hass no programa [norte-americano] Democracy Now!. Ela viveu muitos anos em Gaza e vive agora em Ramallah. Desafia todas as leis israelitas para continuar como repórter do [jornal israelita] Haaretz. Nesse programa, Hass lembrou que o Estado de Israel tem o registo de cada palestino da Faixa de Gaza, da Cisjordânia e de Jerusalém Oriental. E é verdade.
Cada pessoa palestina tem um bilhete de identidade emitido pela Autoridade Palestina, mas cada um desses documentos tem de ser aprovado por Israel. A Autoridade Palestina tem de comunicar cada nascimento às autoridades israelitas. O mesmo vale para todos os documentos emitidos pela Autoridade Palestina, como passaportes. Se é o Estado de Israel que decide quem é ou não considerado palestino, quem entra ou sai dos territórios da Palestina, então Israel é um Estado ocupante.
Antes de 7 de outubro já Israel tinha tornado prisioneira toda a população de Gaza. Foi há 17 anos. Não podemos falar só das últimas semanas. O Hamas nasce como resposta à ocupação israelita. Não é responsável pela população de Gaza. Cabe a todos nós, mas principalmente aos jornalistas, combater estas narrativas falsas, totalmente injustas.
Israel é responsável por todas as vidas perdidas em Gaza. Doentes oncológicos que não conseguiram acesso a cuidados de saúde. Pessoas que morreram de doenças duráveis e que teriam sobrevivido se vivessem em qualquer outro lugar do mundo. Todas essas pessoas foram mortas pelos diversos governos israelitas no poder desde o início do cerco de Gaza.
“Preferia não falar de terrorismo, mas se for mesmo necessário temos de aplicar essa designação a todos os terroristas: ao Hamas, ao Estado de Israel e até aos colonos israelitas na Cisjordânia.”
O ataque de 7 de outubro foi, efetivamente, um ataque terrorista. Mas o uso da palavra “terrorismo” costuma ser usado como sentença para não se discutir o contexto de algo que não aconteceu no vácuo. Rapidamente apareceram comparações entre o Hamas e o Daesh ou a Al-Qaeda.
Essas comparações são exemplo das várias analogias falsas que têm sido feitas. Não sou só eu que o digo. Sugiro a leitura do artigo da [escritora e jornalista] Alexandra Lucas Coelho [Público, 18 de outubro], onde ela apresenta várias críticas ao Hamas, concluindo, ainda assim, que não é uma organização como o Daesh ou a Al-Qaeda. Illan Pappé também desafiou essa comparação na Al-Jazeera.
De facto, a falsa analogia não é sustentável. Há uma diferença crucial: o Hamas não está a lançar ataques terroristas fora de território ocupado. Lançaram este ataque contra o poder ocupante. O terrorismo contra o poder ocupante não faz parte da história do Daesh ou da Al-Qaeda. A condenação do ataque do Hamas é independente desta evidência.
Mas, da perspetiva da propaganda e da argumentação política, o Estado de Israel tem todo o interesse em apresentar o Hamas nesses termos, porque toda a gente é contra o Daesh ou a Al-Qaeda. Não podemos comparar o terrorismo feito no contexto de uma luta anti-colonial, de libertação de um povo, com os atos terroristas levados a cabo pelo Daesh e pela Al-Qaeda em todo o mundo.
O Hamas é considerado organização terrorista porque aterroriza um povo, lança ataques contra civis, para influenciar decisões políticas israelitas. O que faz, há décadas, o Estado de Israel? Ataca civis palestinos para influenciar as lideranças da Palestina e levá-las a aceitar os termos da sua solução para a ocupação. O que faz, hoje, o exército israelita? Aterroriza e ameaça toda a população da Faixa de Gaza para influenciar a liderança do Hamas. Israel é um Estado terrorista.
Aceitemos que o Hamas é uma organização terrorista. O terrorismo do Hamas é uma resposta ao terrorismo israelita, que começou no anos 1930, mesmo antes da criação de um Estado. O Estado de Israel nasce do terrorismo. O governo britânico considerou como grupos terroristas as milícias sionistas que ajudaram na construção do Estado de Israel.
Preferia não falar de terrorismo, mas se for mesmo necessário temos de aplicar essa designação a todos os terroristas: ao Hamas, ao Estado de Israel e até aos colonos israelitas na Cisjordânia. Não ouvimos falar do terrorismo dos colonos, mas matam pessoas todos os dias. Nas últimas três semanas, mais de 120 pessoas foram assassinadas por colonos israelitas com a conivência do exército.
Discursivamente, a palavra terrorista é usada para pôr fim à História. Não nos leva a lado nenhum. De um lado temos terroristas que atacaram civis e do outro um Estado que defende os seus civis combatendo os terroristas. Que história linda. Mas não é assim. Temos de pensar como usamos as palavras.
Se queremos falar de terrorismo, vamos contar a história toda. Há um Estado terrorista a matar civis. Há um grupo terrorista a reagir a isso matando civis. Vamos deixar isto acontecer para sempre? Ou queremos acabar com este ciclo de terrorismo? A única maneira de acabar com ele é acabar com as condições que o criaram: a ocupação colonial da Palestina.
Obviamente, o Estado de Israel não tem interesse em contar esta história que vai contra o seu projeto colonial e que implicaria a criação de um Estado único, numa zona histórica chamada Palestina, com direitos iguais para palestinos e israelitas.
Parece que Israel assume que a única solução é matar mais pessoas. E isso é injusto para todos. Até para a juventude israelita, que aos 17 ou 18 anos tem de entrar no serviço militar obrigatório para aprender a aterrorizar e a matar pessoas. É um crime israelita contra a sua própria população. É injusto para as populações dos países europeus e norte-americanos, cujo dinheiro dos seus impostos é usado para armar Israel e não para melhorar as suas vidas.
Para acabar com tudo isto é preciso descolonizar a Palestina. É preciso dar direitos iguais a todos os seres humanos que ali habitam e trabalhar para um futuro diferente. A luta na Palestina não está desligada da luta por justiça social no resto do mundo. Temos de trazer estas noções para as discussões públicas, mas é preciso dar-lhes voz. Voltamos, então, à injustiça epistémica. Para combatê-la, estas narrativas têm de estar mais presentes.
Sobre a cobertura mediática da colonização da Palestina, o jornalista Robert Fisk fala de um fenómeno de “dessemantização” em que o sentido das palavras se vai esboroando. “Colonatos” tornam-se “assentamentos”, o exílio forçado e as deportações tornam-se “transferências populacionais”.
Há uma luta semântica a ser travada desde o início da colonização. O poder político e as elites económicas estão sempre a tentar produzir uma linguagem que sirva os seus interesses. A linguagem também é um dos lugares onde temos de lutar contra a colonização.
Israel fala dos seus colonatos na Cisjordânia como “bairros de expansão natural”. Isso não corresponde à realidade, nem os colonatos são bairros civis. Todos os colonos estão armados e têm treino militar. São protegidos por estruturas de violência armada. O apartheid na Cisjordânia é posto em prática pelos próprios colonatos.
Há um exército para proteger estes assentamentos israelitas entre aldeias e vilas palestinas. Há ruas e estradas interditadas aos palestinos. A Convenção de Genebra diz que um poder ocupante não pode usar os seus civis para expandir a sua ocupação, implantando-os nas áreas ocupadas, mas Israel fá-lo às claras e sem quaisquer consequências.
O Estado de Israel abusa dos seus pobres para sustentar o seu projeto colonial. Alguns colonatos representam vozes mais extremistas, aqueles que dizem que toda Cisjordânia deve pertencer a Israel e que os palestinos não têm qualquer direito a essa terra. Mas também há muitos colonos que são, simplesmente, pessoas de classes económicas baixas, sem dinheiro para viver nas cidades israelitas [onde existe uma profunda crise de habitação].
O governo israelita abusa da pobreza dessas pessoas e garante-lhes uma vida nos colonatos. Dão-lhes casa, educação gratuita para os filhos, proteção e trabalho. Há quem não tenha outra opção que não seja aceitar. Também são vítimas da colonização e do apartheid israelitas. Temos de conseguir distinguir as vítimas dos culpados. Os colonatos israelitas são ilegais e a culpa é do Estado de Israel.
“Há uma luta semântica a ser travada desde o início da colonização. O poder político e as elites económicas estão sempre a tentar produzir uma linguagem que sirva os seus interesses. A linguagem também é um dos lugares onde temos de lutar contra a colonização.”
É um processo muito semelhante ao da colonização de Angola pelo Estado Novo, que enviou milhares de camponeses para o interior do país, dando-lhes casa, terrenos, trabalho e trabalhadores. Acabaram por ser algumas das primeiras vítimas da sublevação da UPA, em 1961, quase como escudos humanos.
É por isso que temos de dizer claramente que o inimigo é um Estado colonial. O responsável por toda a miséria vivida na Palestina e em Israel é o Estado colonial israelita. Abusa dos pobres israelitas, dos palestinos, e não há nada que justifique isso. Nada justifica um regime de apartheid.
Nem sequer falo dos palestinos da Faixa de Gaza e da Cisjordânia. Há palestinos que são cidadãos israelitas. Um milhão e meio de pessoas que não têm os mesmos direitos que os cidadãos judeus. Há zonas onde um cidadão palestino de Israel não pode comprar propriedade. Se casar com uma pessoa que não tem cidadania israelita, não pode trazê-la para viver consigo.
Estamos a falar da única democracia do Médio Oriente? Há uma falsa semântica, baseada em mentiras, em falsas premissas e em ignorância intencional, um conceito central na discussão sobre injustiça epistémica. Os meios de comunicação europeus não querem saber disso. Os jornalistas não questionam a democracia israelita onde um quarto da população não tem os mesmos direitos que os restantes só por causa da sua religião. Isto é intencional e sustenta todas as narrativas falsas.
A História de Portugal diz-nos que não se pode ter democracia enquanto houver dominação colonial. Essa ignorância intencional ajuda a ocultar uma parte importante das experiências palestina e israelita. Como consequência, a voz de um palestino que vive sob ocupação não chega à opinião pública. A nossa experiência, a nossa realidade, não se encaixa na narrativa falsa, baseada em premissas falsas, que é hegemónica.
Tem havido um uso argumentativo desmedido da memória do Holocausto e do nazismo. O primeiro-ministro israelita, Benjamin Netanyahu, disse ao chanceler alemão, Olaf Scholz, que Israel combatia “os novos nazis” e a delegação israelita do Conselho de Segurança da ONU foi criticada, até em Israel, por colocar as infames estrelas de David amarelas, usadas pelo regime Nazi, na lapela durante uma reunião do conselho.
É um abuso da memória do sofrimento de milhões de pessoas para perpetuar um genocídio e um vergonhoso desrespeito para com as vítimas do Holocausto e o povo judeu. Como palestina, talvez não esteja no lugar certo para o afirmar, mas há sobreviventes do Holocausto, como [o médico e escritor] Gabor Maté, que o dizem. Há um claro abuso político, discursivo, da memória do Holocausto. Mas há judeus que dizem “não em nosso nome”. Isso basta-me⦠A nossa obrigação moral é apoiar a sua voz.
Podemos desafiar as semelhanças. Dizer que o que aconteceu no dia 7 de outubro foi um pogrom apaga uma dimensão crucial para entender a perseguição dos judeus na Europa: a assimetria de poder. A opressão e o controlo de uma minoria por um aparato de poder. Os judeus perseguidos e mortos pelo nazismo não eram colonos.
Não é bom que representantes políticos na Europa e na América do Norte estejam a usar a memória do Holocausto como ferramenta política. É normal que sintam culpa e vergonha. Estão a lidar com uma ferida histórica e querem garantir que não se repete. Mas, emocionalmente, torna-se muito difícil ter um debate sobre o que o Estado de Israel está a fazer agora. Basta ver quem está a matar quem.
Temos de combater o abuso discursivo da memória do Holocausto por um poder colonial, e dos seus aliados, sem entrar em comparações. Há vozes judaicas a fazê-lo de forma corajosa e impressionante. Devemos apoiá-las. São quem tem mais credibilidade para o fazer.
Tem sido bastante notável o uso de linguagem não comprometedora por parte do Ocidente. Em vez de um cessar-fogo, por exemplo, pede-se uma “pausa humanitária”.
Como palestina que luta pela libertação da Palestina, devo lembrar que o nosso sofrimento não é a consequência de um terramoto ou de qualquer catástrofe natural. A nossa causa não é humanitária. Reduzir a luta do povo da Palestina a uma crise humanitária é injusto e nós não vamos aceitar isso.
Claro que vivemos uma emergência humanitária, mas isso é a consequência do problema. Os pedidos de cessar-fogo para a entrada de ajuda humanitária são necessários, como fez o secretário-geral da ONU, mas não suficientes. Quais são as causas dessa crise humanitária em Gaza? É uma consequência direta do cerco e do bombardeamento que está a acontecer. Para termos uma visão completa, temos de trazer o elemento histórico à discussão.
Ainda assim, os pedidos de cessar-fogo não estão a funcionar. Joe Biden disse que ainda não era tempo para um cessar-fogo. Mais de oito mil mortes* não bastam, ainda não é tempo. Temos de reforçar a urgência de um cessar-fogo e de ajuda humanitária, sem nos esquecermos das causas de tudo isso. É preciso acabar com a ocupação israelita da Palestina e criar um Estado onde as pessoas vivem iguais.
Falando como especialista em discurso institucional, creio que António Guterres não poderia ter dito mais do que disse. Não acredito que pudesse dizer mais, e já é muito para o cargo que tem. Há que entender que temos instituições como a ONU por uma razão, e que é preciso lutar noutras dimensões e com outros meios. A luta discursiva não deve ser igual em todas as esferas.
O governo português pode dizer muito mais do que tem dito até agora. Por exemplo, o primeiro-ministro irlandês tomou uma posição muito mais clara sobre a necessidade de um cessar-fogo. Partidos políticos europeus, como o Podemos, também o fizeram. Espero ver os governantes portugueses aproveitarem as posições em que estão para denunciar o que se passa na Palestina da forma mais adequada aos seus cargos. Não o vi até agora.
“Fala-se de dois povos que se estão a matar um ao outro. Não há contexto. O público é deixado a deixado a achar que isto é algo que sempre aconteceu e continuará a acontecer e não há nada que se possa fazer contra isso.”
A linguagem tem sido escolhida com muito cuidado. Também se tem discutido semântica: se é correto dizer que estamos perante um genocídio.
Essas discussões devem acontecer, mas não nos media. A lógica atual dos meios de comunicação social não permite um debate saudável. Ficamos vulneráveis a opiniões problemáticas sem contraditório, até porque há uma seletividade em relação a quem pode falar. Não vejo razão para ouvir militares ou especialistas em direito internacional a debatê-lo nos media, quando deve ser debatido nos espaços em que terá consequências reais e práticas.
Há uma lacuna entre aquilo que é do interesse público discutir e as horas de debate entre especialistas que até fazem questão de usar uma linguagem extremamente técnica que ninguém percebe. Mas é a lógica dos media. O caso da Palestina é só um exemplo de como estamos a desapoderar o público, através de comunicação ininteligível, alienando-o do que está a acontecer e tirando-lhe as ferramentas necessárias para conseguir tomar uma posição.
Foi assim no tempo da troika. Ficou bastante explícita a forma como queriam passar a mensagem de que a situação era muito complicada e que tu, pessoa normal, não precisavas de ter uma posição em relação a isso, que deverias deixar os peritos discutir e os políticos decidirem. É uma forma de alienar um povo quando sabemos que a sua voz não se vai alinhar com as decisões políticas assumidas.
Também houve um fenómeno de dessemantização mediática durante a troika. Cortes estruturais passaram a “ajustes”. É uma maneira de criar consentimento.
Completamente. A discussão é sempre sobre as decisões tomadas pelos políticos e não sobre as justificações dadas para as tomar. Os políticos devem ser responsabilizados por todas as suas decisões, e para tal devem assumir o dever de se justificar perante o desacordo.
Em vez disso, vemos práticas discursivas que sustentam o poder, alienando o público e tirando-lhe agência política. No caso da Palestina é isso que acontece. Na maioria dos casos, fala-se de dois povos que se estão a matar um ao outro. É um “conflito”. Não há contextualização política ou histórica. O público é deixado com a sensação de que isto é algo que sempre aconteceu e sempre continuará a acontecer e não há nada que ninguém possa fazer contra isso. Não é apresentada qualquer alternativa.
Não queremos admitir que estamos a assistir a um genocídio?
Sim. E é pesado. Falo todos os dias com os meus pais, que estão na Palestina, e é difícil, para nós, admitir que estamos a viver uma outra nakba. No momento em que aceitarmos estarmos a viver um genocídio, vamos sentir-nos impotentes para o travar. Como é que vamos continuar as nossas vidas quotidianas? Como é que vamos viver sabendo que assistimos a um genocídio e não fizemos nada para o parar? Num sistema que tira agência política aos povos é natural, infelizmente, que não aceitem estar a assistir a um genocídio.
Os meus avós foram expulsos da sua aldeia durante a Nakba. Foram para uma aldeia vizinha, onde os meus pais nasceram. Na guerra de 1967, a minha família foi expulsa dessa aldeia e foi viver num campo de refugiados. Hoje, os meus pais vivem na Cisjordânia. São refugiados filhos de refugiados. O meu pai tem 72 anos, a minha mãe 67. A ideia de voltarem a ser outra vez refugiados é algo que não aguentam. Não falo disso com eles.
Falamos do que está a acontecer, mas não pintamos a imagem completa. Não podemos compreender a ideia de uma nova Nakba, de um genocídio, enquanto não tivermos o poder de resistir a isso. É por isso que temos de restaurar a agência política dos povos. Só isso pode ajudar a travar o genocídio que está a acontecer.
Essa palavra traz consigo um enorme poder semântico. Carrega todos os elementos de um significado complexo e é importante usá-la discursivamente. Juridicamente, não sei. Talvez desta vez tenhamos de usar outra palavra, mas não creio que valha a pena. A História tem experiências, e delas podemos tirar uma aprendizagem coletiva de que deveríamos beneficiar.
Não podemos começar de novo todas as vezes. Se não usamos estas palavras, estamos a ignorar tudo o que deveríamos ter aprendido com essas catástrofes. “Genocídio” apresenta-nos uma experiência completa com que os seres humanos se podem relacionar. Traz consigo toda a epistemologia da resistência humana, da indignação e da raiva justificadas. É por isso que Israel não a quer usar.
*à data da entrevista. À hora do fecho da edição, o número de vítimas mortais palestinas em consequência dos bombardeamentos israelitas ultrapassava as dez mil.
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